Este artigo apresenta o contexto e a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil (RPB). A RPB pôs na agenda pública a redução dos hospitais psiquiátricos e o desenvolvimento de serviços comunitários em meio à luta pela redemocratização e defesa dos direitos humanos e sociais na década de 1980. A ampliação da oferta de assistência psiquiátrica em hospitais privados foi uma das principais decisões do regime autoritário (1964-1985). A partir da década de 1990 e influenciada pela Declaração de Caracas, a política pública da RPB tem sido orientada para a mudança deste modelo assistencial, contando com o apoio crucial dos governos municipais. O marco fundamental da reforma psiquiátrica no Brasil é a Lei federal 10.216/2001, que define as pessoas com transtornos mentais como uma parte vulnerável da sociedade e institui as condições legais para o fortalecimento da rede comunitária em saúde mental. Os principais êxitos e desafios da RPB são destacados neste texto.
O Brasil é uma República Federativa composta por 26 Estados, um Distrito Federal e 5.564 Municípios. O setor público de saúde, denominado Sistema Único de Saúde (SUS), é de acesso universal e foi instituído pela Constituição Federal de 1988. A responsabilidade financeira e gerencial é compartilhada pelos três níveis de governo da federação (União, Estados e Municípios). Na década de 1990, os governos municipais receberam um papel de extremo relevo na atenção à saúde pela descentralização1.
O sistema de saúde brasileiro apresenta a peculiaridade da convivência de um subsistema público de acesso universal e atenção integral com um expressivo segmento privado. Em março de 2012, existiam 47.866.941 beneficiários com plano privado de assistência à saúde, o que contemplava 25% da população brasileira2.
Paradoxalmente, o Estado brasileiro também tem favorecido o desenvolvimento do setor de planos privados de assistência à saúde por meio de incentivos fiscais. As famílias e as empresas podem deduzir da renda tributável o gasto com assistência médica3.
Até o final da década de 1950 a assistência psiquiátrica no Brasil estava organizada em torno de grandes asilos psiquiátricos públicos, superlotados, com péssima infraestrutura e com os pacientes submetidos a maus tratos. Nas décadas de 1960 e 1970 a massificação da cobertura pelo regime autoritário privilegiou a contratação de leitos em hospitais privados pelo setor público, que aumentaram em número rapidamente4.
Apesar de algumas tentativas de reorganização ao longo da década e do desenvolvimento de algumas experiências pioneiras de desinstitucionalização, chega-se ao final dos anos 1980 com um padrão de assistência sustentado pelas internações em hospitais psiquiátricas em larga escala. Contava-se com cerca de 85.000 leitos em 313 hospitais psiquiátricos, com um tempo médio de permanência de mais de cem dias, caracterizando um quadro de cuidado inadequado e dispendioso (representava o terceiro maior gasto com internações hospitalares no Brasil)5. A provisão de leitos por 100 mil habitantes era 56 por 100.0006.
Em 1990, já instaurada a redemocratização no país, o Brasil adotou uma política de saúde mental baseada na Declaração de Caracas, produzida na Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica no Continente, convocada pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e realizada em Caracas7. Entre outras diretrizes, a Declaração preconiza uma atenção de base comunitária, integral e contínua, integrada à atenção primária em saúde e que prescinda da utilização de hospitais psiquiátricos.
No biênio 1991-1992, o Executivo federal, através de atos normativos, definiu as condições para o desenvolvimento da rede comunitária em saúde mental em todo o país. A implantação dos centros de atenção psicossocial (CAPS) foi ativamente estimulada por meio de repasses financeiros do governo central para Estados e, principalmente, para os Municípios, que detêm a gestão direta dos novos dispositivos da RPB.
Outro fator crucial na reforma do modelo de assistência psiquiátrica foi o projeto do Deputado Paulo Delgado, que propunha, em 1989, a extinção progressiva dos manicômios no Brasil, proteção e direitos às pessoas com transtornos mentais. Após longa tramitação, ele foi promulgado como a Lei Federal 10.216 em abril de 20018. A Lei regula a assistência psiquiátrica no Brasil, definindo o tratamento preferencial em serviços de base comunitária e o hospital psiquiátrico como último recurso.
O efeito da lei nacional tem sido notável no padrão de alocação de recursos do MS na saúde mental e na aderência dos Municípios brasileiros à reforma. Em 2011, as despesas com novos serviços comunitários alcançaram a 71% das despesas do Ministério da Saúde (MS)9. Cabe chamar atenção, que a mudança de prioridade na alocação foi realizada em um contexto de estabilização das despesas do MS com saúde mental, que corresponderam no período de 2002 a 2011, em média, a 2,5% do orçamento do MS10.
O eixo central da estratégia de desinstitucionalização da assistência em saúde mental no Brasil se encontra na implantação dos CAPS. O modelo organizacional dos CAPS emergiu e tornou-se uma alternativa legítima na reforma psiquiátrica brasileira pela difusão da experiência européia, especialmente a italiana.
É uma organização concebida para substituir as internações em hospitais psiquiátricos. Os CAPS têm como população-alvo a clientela com transtornos cuja severidade justifica cuidado intensivo. Os CAPS devem atuar em um determinado território, visando a integração com outras unidades de saúde e o acolhimento dos usuários em uma perspectiva intersetorial11.
Os CAPS apresentam configuração organizacional de CAPS I, CAPS II e CAPS III em função da complexidade dos serviços e da responsabilidade populacional. O CAPS I teria capacidade operacional para atendimento em municípios com população acima de 20.000 pessoas e CAPS II para o atendimento de municípios com população acima de 70.000 pessoas. Os CAPS III e o CAPS III AD (álcool e drogas) teriam capacidade para atender municípios cujas populações estejam acima de 200.000 habitantes, com a diferença em relação aos anteriores de constituir-se em serviço de atenção contínua, durante 24h, incluindo feriados e finais de semana e de contar com leitos integrados ao serviço para o acolhimento noturno. Além das três modalidades, existem serviços territoriais para clientelas específicas na área de álcool e drogas (CAPS AD) para municípios com população acima de 70.000 pessoas e para a infância e adolescência (CAPS i) para municípios com população acima de 150.000 pessoas12.
Em dezembro de 2011 existiam 1.742 CAPS, majoritariamente dos tipos CAPS I e CAPS II. Neste ano havia apenas 63 CAPS III, com funcionamento de 24 horas e leitos para acolhimento noturno, 272 para pacientes que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas e 149 voltados para infância e adolescência10. Os CAPS têm a atribuição de dar suporte e supervisão à rede de atenção primária de saúde. Entretanto, esta integração é relativamente recente e ainda incipiente nas grandes regiões metropolitanas.
Como resultado da implantação dos CAPS e da maior efetividade na regulação da qualidade dos hospitais sob a gestão do SUS, os 85.000 leitos existentes em hospitais psiquiátricos no final da década de 1980 foram reduzidos para 32.284 leitos em março de 2012. Os leitos psiquiátricos em hospitais gerais habilitados pelo SUS eram, no mesmo ano, apenas 11% do total10. A taxa de leitos psiquiátricos era de 19 por 100.000 habitantes, indicando o inequívoco sucesso do processo de deshospitalização da assistência psiquiátrica brasileira, colocando-a no patamar de sistemas com redução consolidada de leitos em hospitais psiquiátricos, como a Inglaterra (23 por 100.000 habitantes)13. Entretanto, no que se refere à provisão dos leitos psiquiátricos em hospitais gerais, a comparação internacional não é favorável ao Brasil. A Itália, cujo modelo assistencial é referência para o Brasil, efetuou a conversão total de seus leitos psiquiátricos públicos para os hospitais gerais13.
Considerando a baixa taxa de implantação dos centros de atenção psicossocial da tipologia III, que dispõe de leitos nas 24 horas, a oferta da rede assistencial na atenção às crises encontra-se, em 2012, ainda inadequada, com predomínio do hospital psiquiátrico.
Dos leitos atualmente em funcionamento em hospitais psiquiátricos, o Ministério da Saúde estima que existam ainda cerca de 11.000 pacientes de longa permanência que necessitam ser alvo de estratégias de desinstitucionalização14. O programa de moradias voltado para a política de desinstitucionalização de pacientes com transtornos mentais em situação de longa permanência hospitalar foi implantado, enquanto política oficial do Ministério da Saúde, em 200015. O dispositivo concebido recebeu a denominação no âmbito do SUS de serviço residencial terapêutico (SRT). A estratégia de implantação dos SRTs está fortemente vinculada a outro Programa do Ministério da Saúde denominado De Volta para Casa, implantado em 2003, que inclui a concessão de um benefício chamado auxílio-reabilitação psicossocial, concedido a pacientes egressos de internações no valor R$ 320,0016. Ao término de 2011, estavam em funcionamento 625 Serviços Residenciais Terapêuticos, beneficiando 3.470 moradores e 3.961 pessoas estavam recebendo o auxílio-reabilitação10.
As iniciativas apresentam limitações quanto à expansão da provisão. Em termos de comparação, a Itália dispunha, em 2007, de 2,9 vagas em dispositivos residenciais por 10.000 habitantes17, enquanto o Brasil 0,18 para 10.000 habitantes em 201110.
Em dezembro de 2011, objetivando aumentar o alcance do programa dos SRTs, o Ministério da Saúde estabeleceu uma nova modalidade, com recursos financeiros de incentivo e custeio definidos, voltada para pessoas em situação de institucionalização “com acentuado nível de dependência e que necessitam apoio técnico diário e pessoal de forma permanente”18. Permitindo um desenho institucional com presença de equipe durante às 24 horas diárias. Este nova organização indica que, no atual estágio do processo de desinstitucionalização, os usuários demandam programas residenciais com alto grau de acompanhamento.
O uso do crack, anteriormente restrito a algumas regiões, disseminou-se no Brasil. A gravidade de seus efeitos e suas repercussões sociais e mediáticas da grande visibilidade dos usuários nas principais cidades tem mobilizado politicamente setores de políticas sociais e de segurança em defesa da internação involuntária.
Até o começo da década de 2000, o Ministério da Saúde limitou-se à oferta de internações em hospitais psiquiátricos e cuidado ambulatorial tradicional. À margem do SUS, floresceu um conjunto de dispositivos de cuidado privados e filantrópicos, muitas vezes financiados por agentes governamentais da segurança pública e assistência social, sendo as “comunidades terapêuticas” as mais numerosas. Estas organizações utilizam a abordagem moral em relação ao uso de drogas, preconizam a abstinência completa como pré-condição de tratamento e enfatizam o apoio religioso.
O Ministério da Saúde, a partir de 2003, tem defendido o cuidado integral através de uma rede territorial diversificada de ações e serviços de saúde baseada na lógica da redução de danos e no respeito aos direitos humanos, que articule os CAPS e a atenção primária, com ênfase nas populações mais vulneráveis19.
Contudo, a implantação dos CAPS ad não teve a mesma prioridade das outras modalidades de CAPS e a resposta do setor municipal não foi suficiente e adequada para a complexidade da questão. Nesse contexto, as internações hospitalares devido ao uso de substâncias psicoativas (com exceção das decorrentes do uso de álcool) aumentaram a participação no conjunto de internações por transtornos mentais, passando de 7,4 % em 2005 para 18% em 201120. Estas internações são majoritariamente realizadas em hospitais psiquiátricos.
Recentemente, o Ministério da Saúde apresentou um conjunto de portarias em uma tentativa de sanar as lacunas observadas em sua rede de cuidado. Foi concebido um novo CAPS III AD de funcionamento 24 horas, com até 12 leitos, com diretrizes específicas que buscam superar as dificuldades de acesso e a aderência dos usuários ao acompanhamento psicossocial: a garantia de atendimento sem agendamento nos sete dias da semana, o acolhimento mesmo sob o efeito de substâncias e a hospedagem noturna por até 14 dias ao mês21.
Outra nova organização proposta é a unidade de acolhimento, incluída na rede de atenção psicossocial enquanto componente de atenção residencial de caráter transitório. São dispositivos que permitem a permanência voluntária por até seis meses para pessoas que apresentem vulnerabilidade social e precisem de acompanhamento terapêutico e protetivo22. Paradoxalmente, as comunidades terapêuticas foram também vinculadas ao SUS, incluídas em uma nova categoria denominada serviços de atenção em regime residencial, evidenciando as diretrizes conflitantes relativas ao cuidado para pessoas com uso prejudicial de álcool e outras drogas.
Até 1998, a atenção aos transtornos mentais estava excluída da quase totalidade dos contratos das operadoras de planos privados de assistência à saúde no Brasil. A partir de 1999, a cobertura passou a ser obrigatória por força da Lei 9656 de 199823.
Existe evidência sobre o crescimento da provisão de serviços para portadores de transtornos mentais por parte das operadoras de planos de saúde. Em relação às internações psiquiátricas, foi observado um crescimento de 78.720 em 2005 para 100.650 em 2010 (aumento de 28%). No mesmo período, as internações no sistema público caíram de 267.256 para 230.629 (menos 16%). A comparação da taxa de internações psiquiátricas no setor de saúde suplementar com a taxa do SUS, em 2010, mostra uma relevante diferença: enquanto a taxa na Saúde suplementar foi de 284 por 100.000 usuários, no SUS, a taxa foi de 149 por 100.000 habitantes24.
Os dois subsistemas vêm apresentando tendências opostas em relação à internação. Enquanto o SUS desenvolveu uma elevada deshospitalização da assistência psiquiátrica, o componente hospitalar psiquiátrico tem sido fortalecido pelo setor dos planos privados de assistência à saúde.
A redemocratização permitiu ao Brasil implantar, com sucesso, uma reforma na saúde mental com as diretrizes da redução da provisão de leitos psiquiátricos e a ampliação de novos serviços comunitários. A sustentação dessa reforma, ainda que apoiada em lei nacional, não tem sido uma tarefa trivial por força do legado da política de massificação da oferta anterior e a resistência dos grupos de interesses empresariais e profissionais.
A participação social no processo de reforma tem sido significativa. A IV Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2010, a primeira com participação intersetorial, foi precedida por 359 conferências municipais e 205 regionais, estimando-se que em torno de 46.000 pessoas tenham participado do processo, consolidando as conferências nacionais como espaço de relevo para a construção das políticas públicas de saúde mental25.
No que tange aos usuários e familiares, existem poucos estudos ou levantamentos relacionados à sua organização no Brasil. Os dados disponíveis apontam que as entidades existentes (em torno de 120 em 2009) tinham estruturas com grande fragilidade institucional e com atuação muito localizada. Geralmente, são de natureza mista, reunindo usuários, familiares e técnicos, não se organizam em torno de patologias e são criadas a partir de um CAPS, sendo fortemente dependentes dele e de seus profissionais26.
Podem ser destacados alguns pontos críticos relevantes na experiência do Brasil. Em relação a atenção à crise, é necessário ampliar a conversão dos leitos localizados em hospitais psiquiátricos para leitos em hospital geral e ampliar o número de CAPS com leitos. As vagas em dispositivos residenciais permanecem insuficientes, ocasionando a permanência indevida de usuários de longa permanência como moradores de hospitais psiquiátricos.
A incorporação da saúde mental na atenção primária de saúde é relativamente recente e ainda incipiente nas grandes regiões metropolitanas. Embora os chamados transtornos mentais leves representem grande parte das demandas de assistência na atenção primária, o tema ainda desperta pouca atenção no debate e nas ações da Reforma Psiquiátrica.
Face à elevada magnitude do seguro saúde privado no país, o desenvolvimento do modelo assistencial com alta prevalência da internação psiquiátrica no segmento é outro desafio normativo e político a ser enfrentado. Em que medida a elevada oferta de internações psiquiátricas pelos planos privados de assistência à saúde tem servido para aliviar a pressão por hospitalização no setor público é uma questão ainda por ser avaliada.
E, finalmente, a baixa provisão dos serviços específicos para usuários de álcool e outras drogas e a entrada na arena setorial das denominadas “comunidades terapêuticas” tornaram-se obstáculos à consolidação das diretrizes estabelecidas a partir de 2003 e provocaram a fragilização dos stakeholders da reforma psiquiátrica no controle da agenda para o tema não antecipado e talvez subestimado do crack. A oportuna iniciativa de criação dos novos dispositivos públicos para os usuários pelo álcool e outras drogas no biênio 2011-2012 ainda não pode ser avaliada em termos substantivos.
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Citation: Nascimento DS, Fagundes PR, do Rosário N. Advances and challenges of psychiatric reform in Brazil 22 years after the Caracas declaration. Medwave 2012 Oct;12(10):e5546 doi: 10.5867/medwave.2012.10.5546
Submission date: 20/8/2012
Acceptance date: 20/9/2012
Publication date: 1/11/2012
Origin: original language: Portuguese. Commissioned
Type of review: peer-reviewed by 1 reviewer, double-blind
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